Esta matéria é excelente....
Saiu na Revista Língua Portuguesa nº59
ALTAMENTE PERECÍVEL TAMBÉM É CULTURA...
Mitos virtuais
É preciso cuidado com sites e páginas que, em pleno século 21, ainda propagam mitos sobre as palavras e até corrigem ditos consagrados.
Por José Augusto Carvalho
O nome "cesariana", que designa a operação de parto, não tem nada a ver com Júlio César. O nome próprio "César", aliás, que deu origem ao nome genérico dos imperadores alemães e russos ("kaiser" e "czar" ou "tzar", respectivamente) é de origem etrusca, não latina. São dados de Ernout e Meillet, em Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine (Paris: Klincksieck, 1967, s.v. Caesar). "Cesariana" relaciona-se com o verbo caedo, -is, cecidi, caesum, caedere, que deu origem ao fr. ciseaux (tesoura), ao ing. scissors (tesoura), à raiz -cida (de homicida, suicida, formicida etc.) e a nomes como "cisão", "circuncisão", "incisão", "rescisão", "precisão" (corte prévio, isto é, eliminação do supérfluo) etc.
O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes, confirma: antes de Júlio César, muitos já haviam nascido por cesariana, até Cipião, o Africano, que viveu antes de César, quando essa operação já se chamava assim.
A internet tornou ainda mais comum a crença fácil na etimologia popular, que não explica nada, mas alimenta a imaginação do leigo curioso. O nome "forró", por exemplo, não tem a ver com o inglês for all, apesar do filme com esse nome e da tradição generalizada. "Forró" é só a abreviatura de "forrobodó", que for all não explica. Basta consultar o Aurélio para atestar isso. O Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo, esclarece, e elimina essa bobagem inventada e divulgada por quem não tem conhecimento, mas muita imaginação.
Lista extensa
Circulam na internet versões "corrigidas" de expressões populares e até da trova popular Batatinha Quando Nasce. Essas versões que pretendem corrigir as expressões populares são anticientíficas, sem respaldo documental, sem explicação de como ocorreram as alterações fônicas, e devem ser desprezadas. As versões que circulam na rede não devem ser levadas a sério. Aliás, é extensa a lista de falsas etimologias:
"Sincero" não tem nada a ver com "sem cera" (o sin-, de "sincero", tem relação com o sim- de "simples"; e o -cero tem relação com -cel-, de "excelso" ou com o -cer- de "prócero").
"Pontífice" nada tem a ver com construtor de pontes (o pontifex latino sempre designou o sacerdote romano, sem relação com o verbo facere, fazer, e ainda menos com pons, ponte).
"Religião" nada tem a ver com o verbo "ligar", mas com "ler". A raiz da palavra se relaciona com o -lig- de "diligente" ou "inteligente" ou com -leg-, lec-, -lei, le- de "eleger", "lecionar", "eleitor" e "ler", respectivamente. O re- inicial é prefixo oriundo de red(i), vir, voltar, que aparece em "redivivo" ou "relíquia". Uma consulta ao Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, de Ernout e Meillet atestará essas informações.
Mitômanos
Castro Lopes, em suas Origens de Anexins, Prolóquios, Locuções populares, Siglas etc. (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1909:63-6), explica-nos a contento muitas coisas interessantes, como o fato de que IHS não representa a abreviatura de Iesus Hominum Salvator (Jesus Salvador dos homens), nem a sigla de "Jesuíta, homem sábio (ou santo)", mas apenas a abreviatura em grego do nome de Jesus (iota, eta e sigma). Mas, em seus Neologismos Indispensáveis (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1909:27-9), propõe bobagens, como, para substituir o fr. avalanche, o termo "runimol", acrônimo formado das iniciais das palavras ruere (ruir), nix (neve) e moles (massa), isto é, "massa de neve que rui".
Em matéria de etimologia, Castro Lopes também cometeu deslizes graves, como o de tentar derivar "carnaval" de lupercália ou de "canto arval". Mais recentemente, Silveira Bueno (Tratado de Semântica Brasileira. 4ã ed., São Paulo: Saraiva, 1965:115) tentou derivar gringo de uma canção americana começada com a expressão "green grow", que a cavalaria americana cantava no século 19, na época da guerra contra o México, embora o termo "gringo" já constasse de um dicionário de Esteban de Terreros y Pando, publicado na Espanha, um século antes da canção americana e da guerra contra o México, segundo informação do Corominas (Diccionario Critico Etimológico de la Lengua Castellana. Madri, Gredos, 1976: s.v.).
No quesito imaginação, Gilles Ménage (1613-1692) ganharia o Oscar: em seu Dictionnaire Etymologique (1694), formado a partir do desenvolvimento de sua obra de 1650, Origines de Ia Langue Française, ele "deriva" haricot (feijão) de raba; laquais (lacaio), de verna; e quille (bola) de squilla (sino), por exemplo.
Defeitos e virtudes
É verdade que Ménage tem virtudes, e muitas de suas etimologias são verdadeiras, mas a sua imaginação para estabelecer a pretensa cadeia evolutiva entre o étimo e a forma atual (esta tão distante fonologicamente daquele) leva o consulente bem-intencionado a descrer da obra toda.
Teria sido melhor, talvez, que ele tivesse ficado apenas com seus versos galantes e mundanos, mas, certamente, não teria hoje o seu nome lembrado. Ganhou com suas bobagens mais que os quinze minutos de fama preconizados pelo artista pop Andy Warhol. Sabe-se que foi Eróstrato que, em 356 antes de Cristo, incendiou e destruiu o Templo de Diana (ou de Ártemis) em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Mas até hoje não se sabe o nome do arquiteto que projetou esse templo.
Cuidados com o spam
É possível reconhecer mensagens e afirmações falsas espalhadas por meio da internet. Confira algumas dicas para não cair no conto do vigário:
Falsas referências - Desconfie da mensagem que remete a origem da informação a fontes de difícil acesso.
Sem link - A mensagem sem fundamento não apresenta o endereço eletrônico que originou a informação divulgada.
Atenção ao tom - Veja se a mensagem contém sinais de ter sido criada só para chamar atenção. Trechos inteiros costumam vir em maiúsculas só por estardalhaço.
Consulte outras fontes - Alguns especialistas no idioma, institutos de pesquisa e algumas universidades possuem sites e publicações em papel, com contatos disponíveis.
Consulte um dicionário etimológico - Na falta de um à mão, o Houaiss eletrônico pode ser de grande ajuda. (LCPJ).
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